domingo, 24 de março de 2013




Achados e perdidos

Há aproximadamente um ano que estou no facebook  onde encontrei tantos amigos e parentes queridos, de quem não tinha notícias  já fazia um bocado de tempo. E conheci outros, que me proporcionaram momentos muito gratificantes de bate papo.
Se houve alegria por conhecer e reencontrar amigos, houve também momentos desagradáveis por ter sido mal interpretada, e gente que nunca lhes vi as fuças se achou no direito de me dar lições de moral.  Sei perfeitamente que, essas coisas acontecem porque a rede é muito extensa, e tem gente de todo tipo, como alguns agregados de parentes e amigos, que a gente não conhece.
Bem, mas isso é outra história, e vamos deixar pra lá.
Percebi que ultimamente, o mural do face se transformou num quadro de “Achados e Perdidos”, onde se postam fotos de carros, motos e cachorros perdidos ou roubados que alguém está procurando; ou de tais perdidos, que alguém está tentando localizar os donos. Quando vejo fotos de cães e gatos perdidos, me ocorre a ideia de que não foram perdidos, mas foram descartados...
Há uns anos atrás, ocorria muito no Japão um fato parecido: gente que adotava bichos exóticos como jacarés e cobras, que achavam lindos quando pequeninos, ao verem-nos enormes e ameaçadores descartavam jogando-os na rua. E lógico, criava problemas de segurança para os cidadãos.  Gente idiota tem no mundo inteiro, até no primeiro mundo.
Bem, mas animais perdidos e jogados a gente sabe que tem aos montes. Não é de hoje que isso acontece. Infelizmente.
O que me incomoda muito hoje é o número de crianças e idosos perdidos, não localizados, que alguém está procurando. De repente, o mural do facebook virou um quadro de “PROCURA-SE” de Delegacia de Polícia. Mas, os procurados não são criminosos, são pessoas que sumiram sem deixar rastros, sem dar adeus, tchau ou até logo. E pelos avisos, parece que os familiares estão realmente preocupados, procurando-os e pedindo ajuda de alheios. Parece.
Sei que há casos de sequestros e não duvido que, alguns sejam tais casos, mas o que me incomoda bastante é a estatística que está crescendo dia a dia. Tem se a impressão que todo dia há alguém sumindo, uma criança, um jovem, um idoso. E por que tais fatos acontecem?
Descaso? Descuido? Maus tratos? Desorientação mesmo?
Nesta semana, anunciaram o desaparecimento de uma criança de três aninhos, que sumiu depois que a mãe soltou sua mão na rua... Essa mãe que me desculpe, mas soltar uma criança de três aninhos na rua é o mesmo que pedir que, desapareça no meio da multidão. Mãe que é mãe, que pensa na segurança do filho tem que ser mais cuidadosa, com certeza. Será que as mães de hoje são diferentes? Não pensam na segurança de seus bebês? Será que nós, as mães de nossa geração, éramos mais estressadas, preocupadas, com medo de perder os filhos? Pode até ser, mas nunca perdemos os filhos pequenos, assim gratuitamente.
E o que dizer de pais e mães que esquecem seus bebês no carro o dia todo? Que loucura é essa que faz os genitores não se lembrarem, nem por um segundo durante um dia inteiro, que têm filhos? Que valor têm esses filhos em suas vidas? Eles ocupam algum espaço na agenda do dia a dia desses pais? Ou são apenas estorvos? Infelizmente, não dá para tirar boas conclusões... E como será conviver com o remorso de tê-los sacrificado por causa do trabalho, por outros “compromissos urgentes e inadiáveis”?
Não queria estar na pele desses pais...
Eu me lembro que, quando trabalhava na Escola Ebe Aurora, havia um pai que ia todas as noites, buscar suas filhas adolescentes. Ele trabalhava o dia todo, mas não descuidava das meninas.  Podia estar chovendo, ou fazendo um frio terrível, o homem estava lá de plantão às 23 horas diante da Escola, esperando as meninas. Elas se tornaram adultas e nunca deram trabalho para a família. Qual é o pai que hoje se habilita a fazer tais gestos de amor?
É, os tempos mudaram.
Mas, não venham me dizer que a vida nossa era mais tranquila. Nós, as mães de nossa geração, também demos duro para criar nossos filhos, trabalhando boa parte do dia, e sendo mães e domésticas em casa. E não havia as comodidades de hoje de um carro à disposição, de um celular para dar recados esquecidos, para conferir se os filhos estavam bem.  Muitas de nós nem dispunham de telefones... Com dificuldades ou não, conseguimos dar conta do recado sem perder filhos, pais e avós, pelos caminhos...
O que está acontecendo com a humanidade?
Trabalhar se tornou prioridade? Acima dos filhos, dos pais?
Dizia Madre Teresa de Calcutá que a pior doença é a falta de amor. Parece que esse sentimento está sendo varrido, para dar lugar à ambição desmesurada de chegar lá no topo, de ser alguém na vida. E à custa, às vezes da vida de um filhinho esquecido por horas no carro fechado, no estacionamento.
          Tenho dó dos gatos e cães descartados, que procuram seus donos.
Tenho muito mais de crianças e velhinhos abandonados.
     Um dia, o filho que abandonou o pai estará, quem sabe, na lista de “Achados e Perdidos”? 
  É isso que estão ensinando...

Mirandópolis, março de 2013.
kimie oku in cronicasdekimie.blogspot.com





quinta-feira, 14 de março de 2013




Para que servem os provérbios?


Aprecio demais os provérbios.
São como caixinhas de segredos, que contêm grandes lições. São os pensamentos de gente muito sábia, que deixou para nós, um grande tesouro. Todos podem viver melhor, aproveitando o que os nossos antepassados nos legaram.
Descobri que todas as nações cultivam seus provérbios, e muitos significam a mesma coisa, enunciados com outros dizeres. É que a sabedoria não é privilégio de lugares, mas de mentes que pensam, observam e tiram conclusões.
Sabedoria não tem nacionalidade.
Mas, para que eles servem?
         Servem para poupar tempo e esforço, pular fases, para não se cometer enganos que, outros cometeram por ignorância.
Gosto muito de provérbios que usam a ironia, para provar a sabedoria de uns e a ignorância total de outros. Exemplos disso são:
         “É desperdício dar pérolas aos porcos”
“Rezar sutras ao pé do ouvido do cavalo”
“Não aconselhes o tolo, em qualquer caso ele te culpará depois”
“Gastar velas com defunto ruim”
“Quando o sábio aponta as estrelas, o idiota olha o dedo”
Percebe-se que tudo é desperdício: pérolas aos porcos, sutras aos cavalos, conselhos a tolos e velas com certos defuntos... mas, o que significam? Que a gente não deve perder tempo e trabalho em atividades sem retorno, com gente vazia que jamais entenderá os nossos propósitos.
Eu me lembro que há uns trinta anos, estava na expectativa de assistir  “O último Imperador” de Bernardo Bertollucci e alguém me disse para desistir de vê-lo, porque era “muito, muito chato!”
Bertollucci, um gênio do cinema.
E quanto ao sábio que aponta as estrelas, já vi tanta gente que, em conferências muito importantes só reparou no traje do conferencista... “olhou o dedo somente...”
Sobre o dinheiro:
 “Deus, às vezes castiga os homens enriquecendo-os”
“É o homem que ganha o dinheiro... ou é o contrário?”
Dinheiro é apenas um reles objeto criado pelo homem, para facilitar as trocas de mercadorias.  Mas, passou a ser símbolo de Poder. Substituiu tantos valores como a Sabedoria, a Fidelidade, a Pureza das almas. Desde o tempo de Cristo, o dinheiro foi mal usado, pois Judas não traiu o Mestre por trinta dinheiros? E o que os nossos políticos do Congresso fazem por dinheiro? Acho que esses, como o Judas foram totalmente dominados pela vil moeda, e não têm mais cura. Desventurados e pobres políticos! São mais pobres que os pobres.
Sobre lições de vida do cotidiano:
“Quando os coelhos forem eliminados, o cão de caça vai para a panela”
Derrube todas as árvores para o patrão enriquecer, e quando não restar mais uma, você terá que cobri-lo, protegendo-o do sol... A gente vê muito isso em agências de serviço, onde o Gerente é tão duro e arrogante com os servidores inferiores, que eles se vão e no fim, o Gerente tem que varrer a calçada e lavar os banheiros...
Sobre as más companhias:
“Não amarres o asno novo perto de mula velha, porque se ele não aprender a escoicear, aprenderá a zurrar”
O ser humano e até os bichos são produtos do meio. Vivendo em boa companhia é possível absorver bons modos, boas posturas e boa educação. Mas, o contrário acontece muito.  As pessoas absorvem facilmente o que não presta, só porque é diferente e chama a atenção. Daí, tanta gente perdida nesse mundo,  escoiceando e zurrando e cometendo crimes.
Sobre a paciência e persistência:
“O rio forma-se gota a gota” 
“De grão em grão a galinha enche o papo”
“Água mole em pedra dura tanto bate até que fura”
“As águas dos rios chegam ao seu destino esbarrando em margens opostas”
Esses provérbios foram lições de vida para muita gente no passado. Quanta gente não desistiu e conseguiu realizar seus sonhos. E realizaram-nos de forma magnífica, como o empresário  Yataro Iwasaki que criou a famosa marca Mitsubishi. Quando jovem era um pobre diabo, vendendo gaiolas para prender galinhas. Como Ray Kroc, que conseguiu revolucionar a indústria alimentícia com a sua marca Macdonald, e teve como começo apenas uma pequena lanchonete. Como o empresário Shoichiro Honda, que começou construindo sua primeira bicicleta aos oito anos de idade, e criou uma empresa famosa no mundo todo, a Honda Motors Company.
Esses homens e tantos outros do campo da Medicina e de outras áreas com certeza, desconheciam a palavra “fracasso”. Mil vezes eles devem ter tentado, até chegar ao ponto ideal da criação.
“Cair sete vezes e levantar-se pela oitava vez” esta é a frase que se aplica como uma luva para a persistência deles.
E há muito mais provérbios que me encantam.
Mas, hoje vou ficar por aqui, com esse ditado japonês sobre a humildade, que diz:
“A espiga do arroz quanto mais amadurece, mais pende para o chão”
Mirandópolis, março de 2013.
kimie oku in cronicasdekimie.blogspot.com



Legenda:
1Yataro Iwasaki (1934/1985) – criador da megaempresa Mitsubishi
2.     Ray Kroc (1902/1984) – o gênio da  marca Macdonalds
3.     Shoichiro Honda – o criador da Honda Motors Company

quarta-feira, 13 de março de 2013




                       Impressões que ficam


Há um bocado de tempo atrás, eu não sabia nada da língua japonesa. Queria entender o que as pessoas falavam e não conseguia. Eu me sentia completamente idiota, por não saber a língua de meus pais e ancestrais.
Aí, um Professor que viera do Japão, resolveu ministrar aulas noturnas aos adultos, que estivessem interessados. E lá fui eu, mais que interessada. A princípio, porém, me sentia totalmente perdida, porque não captava nada do que ele dizia.
 E passei a assistir aos programas do canal japonês NHK, para ver se absorvia alguma coisa. Mas, esse canal é mais ou menos parecido com a Tevê Cultura do Brasil, e a linguagem é mais culta e refinada que a linguagem do dia a dia, e eu conseguia apenas entender uns vinte por cento do noticiário. E olhem que tinha fotos e outras imagens...

Certa noite, ouvi a expressão “hio tenka” repetidas vezes no noticiário. Fiquei encucada. Procurei no dicionário japonês e não havia essa expressão, mesmo porque há várias maneiras de se escrever uma mesma palavra em japonês, com significados diferentes.
Eu era a pessoa mais ignorante do grupo de pessoas que iam à escola noturna. E vivia fazendo perguntas às colegas, que traçavam a língua com certa facilidade, e conseguiam manter um diálogo com o Professor. Achei normal perguntar a uma delas o significado de “hio tenka”. Não sei o que houvera com a colega, que me tratou com a maior frieza e, disse que “hio tenka” significa frio, abaixo de zero, nível de congelamento. Era como se me dissesse: “Você é tão ignorante que nem isso sabe?”
Nunca mais esqueci o significado, porque à frieza da expressão se juntou a frieza da colega, que também foi abaixo de zero. E toda vez que penso nela sinto essa frieza de gelar.
Foi a impressão que ficou. Impressão muito desagradável.
E passei a notar que algumas impressões marcam e ficam para sempre em nossa memória. Várias vezes fui apresentada a pessoas simpáticas e atenciosas, e eu acabei amando-as de verdade. E a outras que, me esnobaram como se fossem celebridades, e constatei mais tarde que, eram mais ocas e vazias que cabaças.
Eu me lembro que há uns vinte anos atrás, fui a uma conferência da Psicolinguista argentina Emília Ferreiro, seguidora da Teoria do Construtivismo de Jean Piaget. Seus estudos revolucionaram o processo de Alfabetização.  Ela defendia que é possível alfabetizar sem cartilhas e livros, usando somente objetos que existem no meio em que a criança vive.
Os convites para essa Conferência que ocorreu no Anhembi eram limitados, e sabia que eu tivera o privilégio de estar lá.  A expectativa era grande. Todos esperavam ver uma estrela, pois era famosa em toda a América Latina, apesar de a maioria não acreditar em suas pregações.
Havia cerca de 500 participantes e era um zum zum sem fim. Quando anunciaram a palestrante foi uma decepção. A mulher  era enorme como uma matrona, de cabelos longos, lisos e vestia uma simples bata. Perto de mim alguém disse:  “Essa coisa é a Emília Ferreiro?!!!”
Mas, quando ela começou a falar sobre as crianças foi de arrasar. Falava em castelhano, mas falava devagar para todos entenderem. Durante toda a palestra, que durou seguramente  quase duas horas não se ouviu uma tosse sequer. Ela nos deixou fascinados. Disse que, os processos de alfabetização usados em toda a América Latina não respeitavam a criança, como um ser inteligente, que vê, que escuta, que observa e tira conclusões. Disse que toda criança normal é capaz de construir o seu conhecimento, a partir de experiências vivenciadas no dia a dia. Basta o Professor direcionar as atividades para tal fim.

Então, ficou em minha mente a figura de uma mulher corajosa, inteligente que se opunha violentamente às lições decoradas, que transformam crianças em robôs teleguiados, incapazes de pensar. A impressão que ela deixou em mim foi muito forte e percebi o quanto a gente vinha errando, tratando crianças como seres cegos, surdos e mudos, que não percebem o que existe ao seu redor. (Estávamos alfabetizando com a Cartilha Caminho Suave, que não levava em consideração os interesses das crianças!)
E então, foi aquela loucura de levar revistas e jornais para a sala de aulas, e deixar as crianças recortarem letras conhecidas. Algumas logo acabaram montando o próprio nome com os recortes. Era a construção do Conhecimento, dirigida pela própria criança! E tudo parecia uma brincadeira! E elas caminhavam a passos rápidos, reconhecendo letras e palavras vistas no cotidiano, em suas casas, e no caminho da escola. Aprender passou a ser uma atividade prazerosa, pois todos tinham algo a acrescentar às descobertas do dia.
Foi uma pena que, só tive contato com o Construtivismo já no final da minha carreira. Poderia ter ajudado mais os colegas professores na alfabetização.
Hoje já existem materiais mais modernos, coloridos que atraem as crianças para as brincadeiras de formar palavras, e tudo se tornou mais fácil. E espero que os professores alfabetizadores tenham entendido e absorvido o Construtivismo. E estejam aplicando-o nas suas ações pedagógicas.
Mas, já sou aposentada e não devo tentar passar lições para ninguém, mesmo porque meu tempo já era.
Apenas quis passar esses dois momentos de minha vida, cujas lembranças ficaram para sempre gravadas em minha memória. Um momento que deixou uma lembrança gelada, e outro que me deixou mais apaixonada pela educação.

Mirandópolis, março de 2013.
kimie oku in cronicasdekimie.blogspot.com



     

quarta-feira, 6 de março de 2013


       Cantigas de roda

Acredito que a maioria das pessoas de ambos os sexos, brincou de roda um dia, na infância.
         E não há nada mais forte para nos levar de volta aos primeiros anos de vida, que uma cantiga de roda, que ficou esquecida lá atrás. A gente acha que esqueceu tudo, mas, um piano tocando os acordes de “Samba Lelê tá doente... tá com a cabeça quebrada” tem o poder de nos transportar a um tempo, a uma época de inocência, às primeiras brincadeiras da vida.
Não sou pianista, mas arranho um pouco e, nada me deixa mais feliz  que os acordes que lembram a infância. Não é por ter sido mais feliz naqueles tempos. É simplesmente porque tive uma infância como as outras crianças, e brinquei de roda e aprendi a cantar todas as cançonetas do repertório infantil.

         Aprendi a brincar de roda cantando: “À mão direita tem uma roseira que dá flor na Primavera, que dá flor na Primavera. Entrai na roda, ó linda morena e abraçai a mais faceira, e abraçai a mais faceira.”  Depois cantava: “Cachorrinho está latindo lá no fundo do quintal. Cala a boca, cachorrinho e deixa meu amor entrar... o tindo lelê, o tindo lelêlê lá, o tindo lelê,  não sou eu que caio lá.” E seguia com: “O cravo brigou com a rosa , debaixo de uma sacada. O cravo ficou ferido e a rosa despedaçada. O cravo ficou doente. A rosa foi visitar. O cravo sofreu um desmaio, e a rosa pôs-se a chorar.” E aí vinha: “Fui no Itororó, buscar água e não achei. Achei bela morena, que no Itororó deixei. Ó Mariazinha, ó Mariazinha entrai na roda ou ficará sozinha! Sozinha eu não fico, sozinha não hei de ficar, pois escolho o fulano para ser meu par.” “Tira, tira o seu pezinho, bota aqui ao pé do meu. E depois não vá dizer que você se arrependeu” “Como pode o peixe vivo viver fora d’água fria? Como pode o peixe vivo viver fora d’água fria? Como poderei viver, como poderei viver, sem a tua , sem a tua companhia?

       E por aí ia embora, com as crianças pulando, saltando, declamando versos, dando meia volta e volta e meia. Era tão energizante e preencheu meus dias de criança, de forma plena, que nunca mais esqueci.
Hoje, as crianças não brincam de roda. Não sabem cantar essas modinhas infantis. Não conhecem os folguedos de outrora.
Como tudo muda. E tudo se esquece.
Mas eu redescobri a felicidade de brincar de roda com a turma da Ciranda. E descobri que todos gostam de cirandar. Não importa a idade, o sexo, a religião... Todos se encantam na hora de brincar. E a roda inspira os participantes a declamar, a falar, a rezar, a cantar. Todo mundo se desinibe. E isso é contagiante.
Lembro que uma cirandeira quietinha, de repente, resolveu declamar arremedando um mascate sírio-libanês, vendendo roupas. Foi muito engraçado.

Acho que, nós os adultos podíamos resgatar essa brincadeira de roda nas reuniões de família. Nada é mais caloroso do que se dar as mãos e andar em roda prá lá pra cá, cantando velhas canções infantis.

Substituiria de forma tão saudável as mesas de truco e serviria para gastar as energias que sobram.
Então, que tal brincar de Ciranda, cirandinha?



          Mirandópolis, fevereiro de 2013.
          kimie oku in cronicasdekimie.blogspot.com






                               Lembranças de um cachorro

       Quando comecei a dar aulas, fui parar numa escolinha de roça, lá no fim do mundo, onde o Judas perdeu as botas.
         Era uma escolinha pobre à beira de estrada, onde não passava ninguém. De vez em quando passava uma jardineira, dessas antigas, que levava o povo para a cidade e o trazia de volta à tardezinha.
         Pois bem, a escolinha de tábua pintada de azul claro ficava no meio de um pasto, onde pastava o gado nelore do fazendeiro.
         E no pátio da escola reinavam os cabritos. Era um bando de umas  trinta cabeças que berravam o dia todo: bé, bé, bé, bé, é, e´, é, é.....       Todos os  dias, a escola tão pobre amanhecia cercada de bolinhas pretas, que os cabritos dejetavam invariavelmente.  E todos os dias, as crianças maiores e eu varríamos as bolinhas... Por sorte, durante o período das aulas, eles iam pela estrada, à procura de capim e o seu berreiro dava uma folga. Nada entraria na cabeça das crianças com aquele berreiro sem fim...
         Havia cerca de sessenta alunos. Inacreditável, mas era verdade!  E eram alunos de 1º, 2º e 3º anos. Vinham de uma colônia de plantadores de algodão, distante uns quatro quilômetros dali. Apesar de muito trabalho para dar conta de toda a molecada, o período da manhã era cheio de alegria, e eu enfrentava minha tarefa com disposição.
         Ora, como não havia carro que me trouxesse para a cidade, ficava uns domingos lá de castigo. Sábado havia aulas normalmente. Onde eu hospedava, havia só duas famílias. Era uma desolação só... E a cabritaiada berrando sem parar.
        Vale lembrar que os alunos eram filhos de migrantes nordestinos de Sergipe, Pernambuco, Alagoas, Ceará e Bahia. E nenhum deles tinha certidão de nascimento.
Um dia, convoquei todos os pais e lhes comuniquei que precisavam registrar as crianças.  Para forçá-los a cumprir seu dever, lhes disse que se uma delas chegasse a falecer, não poderia ser enterrada no cemitério, por falta de documento.
No dia seguinte, o arrendatário do algodoal levou todos os pais num caminhão para a cidade e, todos conseguiram ser registrados. Apesar de ter usado uma artimanha, tenho muito orgulho por ter tido a coragem de forçar aqueles pais, a regularizarem a situação das crianças. Talvez seja a coisa mais importante que tenha feito naquela escolinha, porque recém-saída da Escola Normal, não sabia nem como iniciar a alfabetização...
Bem, mas quero contar uma passagem interessante, que tive enquanto ali permaneci. Uma mãe de aluno, dona Valdete, condoída de minha situação, nos fins de semana mandava uma charrete me buscar para  ficar numa fazenda, a uns seis quilômetros dali. Era uma cearense  arretada, alegre e muito atenciosa, assim como o seu marido, o senhor José João.
Dona Valdete, na condição de mulher pobre de peão de fazenda, esmerava-se para me servir uma boa comida, e fazia bolos e pães. Era uma felicidade partilhar da vida daquele casal e seus três filhos.
Ora, na fazenda havia um cachorro preto muito bonito, de pelos longos e bem lustrosos, chamado Jackson. Não sei de que raça era, mas parecia o Setter Irlandês, só que era preto, preto.  E pelo que consta não existe Setter dessa cor.  Era bem bravo, mas se destacava pela beleza da pelagem. Um dia, o seu José João me ofereceu o cachorro. Espantada pela oferta, indaguei-lhe a razão. E ele me contou.
O fazendeiro, cujo nome não gravei, de origem árabe havia ido visitar os parentes havia meses, lá do outro lado do mundo. Acontece que após um tempo, o homem viera a falecer na terra natal. No Brasil não possuía parentes. Era solteiro e morava sozinho na Casa Grande. E o casal é que cuidava dele enquanto viveu na fazenda.  Acontece que o cachorro era dele e tinha paixão pelo patrão. O carinho era recíproco.
Não se sabe como, o cão sentiu que perdera o seu amigo e começou a atacar os bezerros da invernada, mordendo-lhes as canelas. Isso estava causando um dano grande e, o seu José João estava muito preocupado, porque um dia viria alguém responsável, ou herdeiro dos bens do patrão, a quem teria que explicar as perdas dos bezerros.
Achei um encanto ganhar o belo cachorro e pedi a um familiar meu para buscá-lo de camionete. Amarrado o bicho, lá foi ele para a minha casa num sítio, distante dali bem uns quarenta quilômetros. Enquanto estava na escola dando aulas, ele ficou amarrado em casa por uma semana, para não fugir. Mas, ele chorava e gania tanto que o soltaram de pena do seu sofrimento.  No instante em que se viu livre, ele disparou pelo carreador e desapareceu.
E à tardezinha do mesmo dia, ele apareceu na fazenda onde morava.  Moído de cansaço... Ele percorrera uns quarenta quilômetros, por estradas que nunca vira antes... Como foi possível isso? Instinto? Sexto sentido? Faro?
O seu José João queria me dar o cachorro de novo e eu não aceitei. Se soubesse que causaria tanto sofrimento ao pobrezinho, jamais o teria aceito e levado para tão longe.
Daí uns meses fui transferida para outra escola e, nunca mais soube de dona Valdete, de seu José João e nem do cão Jackson.
Esse fato ocorreu há mais de cinquenta anos, e toda vez que vejo um cachorro parecido, lembro com respeito do Jackson.

Mirandópolis, fevereiro de 2013.
kimie oku in cronicasdekimie.blogspot.com
         

sábado, 2 de março de 2013





         Apologia do bambu


 Sempre tive vontade de escrever sobre o bambu.

         Por ter ascendência nipônica, cresci em sítios, onde havia moitas de bambu.
Anos mais tarde, soube que os japoneses do Japão se refugiavam durante os terremotos, nas moitas de bambu. As touceiras do bambuzal formam um enraizado todo trançado como uma rede bastante firme no subsolo, que os terremotos mais comuns não conseguem desmanchar. E assim, serviam de refúgio e proteção, quando os cataclismos chegavam e, rachavam o chão        em valetas intransponíveis.
Os imigrantes japoneses chegando ao Brasil plantaram muitos bambuzais, mesmo sabendo que, aqui não ocorriam essas tragédias. Brinquei e descansei várias vezes, à sombra dos bambuzais.
Mas, a serventia deles para nós estava ligada à alimentação. Brotos de bambu foram muito consumidos pelas famílias de imigrantes naqueles tempos difíceis, e de alguma forma sustentou a sua saúde, fornecendo-lhes fibras ricas em proteínas vegetais, aminoácidos, cálcio, fósforo e vitaminas. Além disso, o consumo de bambu pode prevenir doenças cardiovasculares e o câncer.
Todos os pequenos proprietários rurais japoneses tinham moitas de bambu no quintal. As varas flexíveis eram utilizadas para se fazer cestas, utilizadas para colher frutas, verduras e ovos, e balaios para a colheita do algodão. Os próprios japoneses confeccionavam essas cestas e esses balaios, que foram muito úteis naquela época. Mais tarde, as longas varas de bambu por serem ocas, foram utilizadas como canaletas para levar água às galinhas das granjas. Ainda não existiam esses cochos de plástico, que facilitaram bastante o trabalho do granjeiro.

Hoje são raras as pessoas que conseguem confeccionar balaios e cestas. E os sítios onde há moitas imensas de bambu com certeza, já foram pertences aos japoneses. Nos tempos atuais, em que o homem devastou todas as florestas, acabando com as árvores que forneciam madeiras de lei como: jequitibá, aroeira, cedro, peroba, cabreúva e outras, a alternativa que restou foi o bambu. E muita gente tem analisado essa madeira leve e reta, que está sendo largamente utilizada na confecção de móveis e na edificação de prédios resistentes a terremotos.
O bambu é muito aproveitado nos países orientais, como a China, a Coréia e o Japão.   Existem cerca de 1250 variedades de bambu, que podem ser lenhosos ou herbáceos. Há bambus de diversas cores, que vão do amarelo, verde, mesclado de verde e amarelo, roxo, marrom e até vermelho. Cada tipo tem a sua serventia.
Os brotos de bambu muito utilizados na culinária oriental são consumidos como saladas, ou refogados com frango, com carne de porco, em yakissobas... Há uma infinidade de pratos, e até são aproveitados como picles, que são deliciosos.
Os sábios da China e do Japão tiraram muitas lições observando o desenvolvimento de um bambuzal.
 A qualidade mais decantada é a flexibilidade de seus galhos. Por serem flexíveis, os galhos não se quebram facilmente, como os galhos de outras árvores conhecidas. Os homens também têm que ser flexíveis para conviver com as diferenças nesse mundo.
Outra qualidade que se destaca é que o bambu só se desenvolve em touceiras, com galhos se apoiando em outros galhos, formando um emaranhado difícil de derrubar. Se crescesse sozinho, não teria forças para vencer os ventos e os temporais, mas em formação de moitas conseguem parar e vencer os vendavais.  O homem sozinho nada é, nada pode. Mas, em grupo, unidos no mesmo ideal, podem conquistar o mundo.
Além disso, o bambu cresce sempre para cima, para o alto, buscando a luz do sol e suas varas chegam a comprimentos incríveis. O homem deve também ter seus objetivos, e procurar sempre crescer, para se aperfeiçoar.
Como o bambu tem um talhe elegante, com talos finos e folhas longas e delicadas foi muito usado como modelo nas pinturas zen. Nas pinturas de sumiê, ou a carvão, o motivo bambu está sempre presente, assim como nas porcelanas orientais, famosas no mundo inteiro. Eu mesma tenho porcelanas com motivos de bambu, e recentemente ganhei um joguinho de saquê com desenhos de bambu. Eu os aprecio muito.
O que dizer mais? Ah! Os primeiros instrumentos musicais devem ter sido feitos de bambu, por causa da sonoridade natural que há nos canos ocos.

Há uma flauta de bambu, o shakuhachi japonês, feito de um bambu rústico, que tem uma sonoridade de arrepiar. Ele reproduz com perfeição os sons do vento, das águas do rio, da chuva... Aprecio muito o shakuhachi.

E para encerrar, nada melhor que isso:
“Quisera que a minha vida fosse igual a uma flauta de bambu: simples, reta e plena de música”

Mirandópolis, fevereiro de 2013.
kimie oku in cronicasdekimie.blogspot.com