quarta-feira, 31 de outubro de 2012




 24º Encontro da Ciranda

            Realizou-se no último dia 26, o vigésimo quarto Encontro da Ciranda. Significa que o Grupo Ciranda veio para fica, e comemorou dois anos de existência.
               A Ciranda foi organizada por um grupo de voluntários, que se preocupam com os idosos solitários da cidade. Não é um clube social nem político. Tem como objetivo proporcionar um pouco de lazer às pessoas que moram sozinhas. E há muita gente só, que não recebe visitas de um parente, de um amigo...

         Uma vez por mês, levamos essas pessoas para uma chácara, e promovemos o encontro com outras pessoas solitárias, apenas para passarem horas agradáveis, conversando e trocando notícias de famílias e comentando seus problemas de saúde.
         O local do encontro é uma chácara de um amigo, que nos cedeu o espaço com muito entusiasmo, quando soube de nossas intenções. E nessas reuniões, as pessoas conversam, cantam, declamam, brincam de ciranda. E tudo isso ao som de uma boa sanfona do seu Albertino e pandeiro do Toninho.    
         São tardes alegres, com muita risada, muitos abraços e muito carinho. Todos os Encontros foram um sucesso até agora, porque foram estabelecidas três regras de ouro, para disciplinar as reuniões, quais sejam: evitar falar de religião, evitar discutir política e não cobrar mensalidade. E principalmente, não falar da vida alheia... porque isso gera sempre mal entendidos, que a ninguém aproveita.
          Ao encontro de sexta passada, compareceram a Neusa e a Ana Maria Jacomelli, que mudou recentemente para Ribeirão Preto. Ana Jacomelli foi um dos pilares na formação do grupo Ciranda, porque é muito carinhosa e cativou os idosos que participam da Ciranda. Todos ficaram felizes pelo reencontro.
         Nesse dia, compareceu também a sra. Lizarda, que vive sozinha, e não participa de nada, devido à saúde e dificuldades para se locomover. Ficou muito contente por participar da reunião.
         Passamos horas agradáveis, com música, cantoria, declamação de poemas e muitos petiscos e refrigerantes para espantar o calor.
         Ao fecharmos o encontro, fomos à Chácara dos amigos Milton e Remir, para dar-lhes um abraço pelo passamento de sua  sogra e mãe, dona Maria Menegatti, ocorrido na véspera.
         E assim foi mais um encontro da Ciranda.
         No mês que vem tem mais.
        
Mirandópolis, outubro de 2012.
kimie oku in “crônicas de kimie.blogspot.com”


         

quinta-feira, 25 de outubro de 2012

Cremação Sagrada




                               Cremação sagrada



         Todos os povos têm seus costumes e suas tradições. E costumes tão diversificados, que deixam os outros muito admirados. Como venho de origem japonesa, não podia ser diferente.
      Lá no Oriente há tradições, que deixariam os residentes deste lado do mundo boquiabertos, tais as diferenças de cultura que é praticada. Mas, os costumes e as tradições nasceram da necessidade de cada povo se adaptar às condições ambientais, para sobreviver.
         Nos primórdios dos tempos, a China era a potência que dominava aquelas partes do mundo. (E parece que hoje, ela está avançando e dominando o mundo todo). E todos os países e ilhas vizinhas, que há aos milhares lá no Pacífico, foram influenciados pelos costumes do povo do grande continente, como era chamada a China antigamente.
         No que concerne à religião, tanto a Índia como a China foram determinantes para implantar o Budismo (Buda nasceu na Índia) e o Xintoísmo, no Japão. Os monges desses países saiam pelo mundo em busca de fiéis, para lhes oferecer ensinamentos, que conduzissem à vida espiritual, libertando-os da pesada carga de viver sem saber para quê.
         E assim, passaram milênios e milênios.
E os japoneses, coreanos, polinésios, havaianos, filipinos, taitianos e demais moradores das inumeráveis ilhas do arquipélago do fogo, adotaram o Budismo e o Xintoísmo.
O interessante é que todas as famílias no Japão cultuam tanto o Budismo como o Xintoísmo, sem nenhum conflito.

É que o Xintoísmo está voltado mais para a Natureza, para reverenciar o Kamissamá, ou o Deus Criador na sua infinita sabedoria, e respeitar também todas as criaturas por Ele colocadas neste planeta. O xintoísta aprende a amar todas as obras de Deus, como as plantas, os animais, os rios, as matas, o ar, o sol, o vento, as pedras, as montanhas, do mesmo jeito que ama a humanidade.
 O Budismo, por outro lado, adota os ensinamentos de Buda, um sábio indiano, que pregou a humildade, a benevolência e o amor ao próximo.
É costume no Japão, os fiéis irem ao templo xintoísta para pedir as bênçãos de Deus para o filho que acabou de nascer, levando seu nome escrito num papel. Esse local se chama Jinja, ou Santuário de Deus ou Kamissamá, e para se chegar até lá é preciso passar por um portal, ou Torii. Este indica que a partir daí, o fiel está pisando em local sagrado. (Réplicas desses Torii foram construídos junto dos clubes Nipo, em comemoração ao centenário da Imigração Japonesa ao Brasil).
         Os soldados mortos em combates heróicos nas Guerras tiveram a honra de, ter seus restos mortais guardados num desses Jinjas, o Yasukuni Jinja, reservado para esse fim, como o Mausoléu dos Heróis que defenderam a Pátria num momento crucial.  Esse fato sempre cria um mal estar difícil de contornar, porque os chineses que foram combatidos por esses mesmos heróis japoneses, não os consideram heróis, pois se destacaram matando seus compatriotas... Volta e meia esse assunto vem à tona, e para garantir o bom relacionamento com o país vizinho, já se cogitou em transferir essas tumbas para outros locais, porém, sempre foi fortemente contestado pelos japoneses, que consideram isso uma afronta para seus heróis.
Bom, mas para que serve o Budismo?
O Budismo ensina o homem a ser generoso não só para com o próximo, como também para com a natureza, que compreende os animais, as plantas e tudo o mais que o cerca. O Templo Budista é o Oterá, onde as pessoas realizam missas pelos mortos, e queimam incensos e velas para iluminar seus caminhos na eternidade.
Bom, isso tudo é costume de lá do Oriente.
E os meus queridos leitores estarão se perguntando: “O que isso tem a ver conosco?”
É que esta semana fui incumbida de incinerar um dos símbolos do Xintoísmo, e isso me abalou um bocado.
Os imigrantes japoneses quando chegaram ao Brasil, trouxeram junto com suas roupas e documentos, todas as tradições da pátria-mãe. Dentre as tradições, trouxeram os altares de orações, para cultuar Deus (Kamissamá) e os antepassados. São dois pequenos pagodes que tentam imitar as construções medievais dos templos japoneses, feitos de madeira.
Um deles, pequenino, contém a estatueta do Deus oriental, ou a estampa em tecido dourado ou mesmo apenas o seu nome em ideogramas japoneses. Esse altarzinho, geralmente era colocado num lugar mais elevado da casa, para demonstrar a importância de Kamissamá na família.
O outro, o Butsudan, era um pagode um pouco maior, com a imagem do Buda, e com pequenas tabuletas (ihai) contendo nomes dos mortos da família, para serem venerados pelos descendentes.
Os membros das famílias de imigrantes tinham o costume de, ao se levantarem de manhãzinha, se dirigir a esses altares e fazer suas oferendas em forma de orações, de incensos.
No altar do Kamissamá, ou Kamidaná só se colocava folhas frescas verdes, colhidas de manhãzinha, incensos e se murmurava orações.
No Butsudan, como se cultuava a memória dos antepassados da família, as oferendas além de orações, abrangiam também frutas frescas, uma porção de arroz feito no dia, incensos e flores... Essas oferendas de comida eram as reminiscências de um tempo terrível, em que muitos japoneses morreram de fome... E fome era uma tragédia que ocorria ciclicamente no Japão, devido às guerras e aos cataclismos da natureza, como os terremotos e furacões.
É costume nas famílias de japoneses que, o primogênito tem a obrigação de dar continuidade ao culto e preservação desses altares. Como têm ocorrido ultimamente, os filhos brasileiros que adotaram outras religiões se recusam a dar continuidade a essa tradição. Então, quando morre o patriarca, surge o problema de quem irá continuar com os costumes da família. E importa que aquele que der continuidade deve ser alguém, que herdou o nome da família, isto é, que continue com o mesmo sobrenome do patriarca. 
E de repente, o altar do Kamissamá veio parar em minha casa. Pelos preceitos religiosos eu não teria o direito de ficar com ele, porque meu sobrenome é de outra família, não o de meus pais. Mas, até ficaria com ele, na falta de quem o quisesse preservar.
Mas, o altarzinho que tinha cerca de aproximadamente 70 anos, feito de madeira compensada estava todo roído de cupim e se desmanchava a um toque mais firme das mãos. Fiquei sem saber como lidar com isso, e bastante estressada por dias e dias.
Mas era preciso solucionar o problema. Pedi orientação a um monge budista do Oterá Hongwanji de Araçatuba, que me autorizou a incinerá-lo...
Não sou budista nem xintoísta, mas senti um frisson ao ter que executar tal tarefa. Cresci numa casa pobre de roça, sem nenhum conforto, onde sempre a comida era pouca e a roupa era o mínimo necessário, mas nunca faltou uma tigelinha de arroz no altar, nem flores e incensos para o Kamissamá e para os ancestrais de nossa família. E os altares eram sagrados para nós.
Incinerar? Como? Onde? Com cerimonial? Disseram que não. Felizmente, meu esposo me deu a força para executar tal tarefa. Tudo foi feito de maneira simples, mas acendi uns incensos antes para que Deus me perdoasse tal violência.
 E durante a cremação, que durou apenas uns dez minutos, rememorei todos os meus antepassados que, juntaram as mãos reverentes diante desse pequenino pagode, por anos seguidos, pedindo a proteção de Deus para a família. Tive a terrível sensação que estava cremando os corpos deles, ali diante de mim, e as labaredas pareciam almas que partiam em busca de outra morada........
Assisti a destruição de um objeto, que para mim era uma relíquia de família e senti uma dor profunda, como se estivesse pisoteando algo sagrado. E para preservar pelo menos alguma memória, fotografei as chamas consumindo o altar.
E em respeito ao próprio Deus Supremo e aos ancestrais da família, espalhei as cinzas nos meus vasos de flores.

Mirandópolis, 19 de setembro de 2012.
kimie oku in “cronicasdekimie.blogspot.com”

Legenda:  1. Kamidaná
                2. Torii
                3. Yasukuni Jinja
                4. Buda
                5. Oterá
               6. A incineração

terça-feira, 23 de outubro de 2012

Autumn leaves



  Autumn Leaves


          The falling leaves 
          drift by the window, 
          The autumn leaves
          of red and gold.

         "As folhas  que caem contra a janela
         são folhas vermelhas e douradas de outono"


          Esta canção tão simples marcou época desde que foi composta lá pelos anos 45/46, como Feuilles mortes, ou Folhas mortas para os franceses. Foi cantada por Edith Piaf, por Nat King Cole, Frank Sinatra e mais recentemente por Eric Clapton.
           No Brasil foi sucesso nos anos sessenta e setenta.
        É uma canção despretensiosa, que fala das folhas que caem no outono, e das saudades que desperta esse desfolhar das árvores.
Toda vez que vejo as ruas cheias de folhas no chão e percebo a mudança da estação, penso na genialidade da pessoa que escreveu essa cançoneta.
Interessante é que o desfolhar das árvores no Brasil acontece mais no fim de Inverno e não no Outono. Nas últimas semanas é que a gente percebeu como as pessoas lutavam contra o vento, para juntar as folhas mortas nas calçadas. E a estação era Inverno, que cedeu lugar agora para a Primavera.
Nos países frios como no Japão, Canadá, Estados Unidos, é possível perceber essa ocorrência no Outono mesmo, quando as folhas ficam amarelas, douradas e vermelhas, como se as árvores vestissem uma roupa de luxo, para uma festa. É o famoso "Koyo" dos japoneses, que deixa as montanhas coloridas.
         E é de encher os olhos o colorido que toma conta das florestas, das praças e dos jardins. E é apenas a transformação que sofrem as folhas devido à falta da iluminação solar, que fica mais suave nessa época. Esse koyo chega a ser deslumbrante em alguns lugares, e todo mundo percebe que a estação é Outono. No Brasil não ocorre essa mudança, porque o sol é sempre muito forte e não dá tréguas.           
Aqui, ao contrário nunca se percebe a mudança das estações, porque temos um sol forte o ano todo, uma iluminação poderosa e muito calor. Flores e frutos ocorrem durante todas as estações. Mesmo no Inverno vemos primaveras deslumbrantes nos muros das casas, e isso confunde a gente sobre as quatro estações.  E de repente, em pleno Inverno acontece um veranico, ou um calor de estralar mamona. Ou, ao contrário, em pleno Verão vem um frio danado, que deixa todo mundo encolhido.
As estações do ano no Brasil são apenas nomes, que não combinam muito com as condições da natureza.
Quanto a isso, acho que não temos nada a reclamar, pois, o sol tropical proporciona vantagens que outros países não têm: Como a luz solar é o mais poderoso desinfetante, nosso povo tem mais saúde, com menos ocorrência de gripes e resfriados, menos problemas respiratórios do que nos países gelados. Além disso, as plantas crescem com mais vigor, e alimento não nos falta. Afora isso, as roupas secam em instantes nos varais, dispensando na maior parte do ano, as secadoras elétricas.
Na verdade, somos abençoados por vivermos numa região tropical, onde a diversão de fim de semana é a praia. E praia e sol escaldante é que não faltam no Brasil.
Mas, voltando às folhas mortas, tenho uma mania: Gosto de desenhar folhas secas, observando todas as nervuras, que um dia alimentaram a planta, levando a seiva da raiz até os botões para florir.
Vejo na folha seca, uma vida que um dia deslumbrou o mundo com sua beleza. Vejo em cada folha seca que vem bailando pelos ares, uma pessoa que um dia nasceu, cresceu e viveu a vida com entusiasmo, com alegria, com paixão... Cada folha é como uma senhora idosa no fim da vida, procurando um pouquinho mais de seiva, para continuar usufruindo da grande aventura de viver. Cada folha seca caída na calçada é um ancião, que um dia teve sonhos, ilusões, ambições e que está se despedindo da vida, com relutância, porque viver é muito bom.
E cada folha seca me inspira um poema:  


   Galho cortado
   vida partida.
   Mas, a ânsia por viver, 
   ainda permanece
   na folha cheia de espinhos
 implorando........seiva. 


                                                                                                                                                          

    Que segredo precioso 
 queres guardar, folha plissada?
Lembranças da bela árvore,
dos botões verdes e redondos,
das flores brancas e quietas...
ou das tardes luminosas 
 que alongavam as doces sombras?

                                                                                                     
                                 Que mistério transforma

         O verde em prata?
         A folha condenada
         no seu suspiro final,
         se veste de luz
         e de prata...
         Despedindo-se da vida.


    
      Mirandópolis, setembro de 2012.
      kimie oku in "cronicasdekimie.blogspot.com

quinta-feira, 18 de outubro de 2012




Maria Benedita Moreira de Assis


Eu a conheci no final dos anos 60.
Ela, mãe de aluno; eu, professora de seu filho.
        Grupo Escolar de Amandaba, quando o Bairro era um lugar super-povoado, pobre e sem conforto.
Para ir até lá, atolei trocentas vezes com o meu fusca nos buracos da estrada, enfrentei barreiros inacreditáveis, poeira sem fim...
Alunos? Trinta e cinco, quarenta por classe. Todos paupérrimos, de chinelos havaianas os que tinham melhores condições. Os demais, descalços mesmo. Material escolar? A Caixa da Escola tinha que acudir, senão não haveria freqüência... Merenda? Sopa de fubá com almeirão e ocasionalmente, um arroz doce. Os meninos reclamavam do fubá: “Não sou filhote de louro prá comer papa de fubá”
Aula era na lousa, no giz branco, que colorido, só quando a professora comprava... Livro de leitura em preto e branco com raras ilustrações, cadernos só de brochura, borracha, caneta... Os pontos de História do Brasil, de Ciências, de Geografia eram todos colocados no quadro negro, e copiados pelos alunos. Não existia livros dessas matérias, e os alunos copiavam e estudavam, sem resmungar.
Alunos que não dominavam os pontos ensinados, as operações matemáticas, e que não eram capazes de redigir textos eram inexoravelmente reprovados, para reverem todas as matérias no ano seguinte. Não havia Conselhos de Classe, de Série...
Só que todos aprendiam a calcular porcentagem, áreas de terrenos, tabuadas, quem descobriu o Brasil, quem foi Anchieta, Mem de Sá, Duque de Caxias, Tiradentes e sabia o significado do dia 7 de setembro, de 15 de novembro e  cantava o Hino Nacional e respeitava a  nossa Bandeira.
E havia um respeito muito grande pelo Professor. Os pais compareciam às reuniões de Pais e Mestres e ouviam respeitosamente a fala do Diretor e as orientações dos Professores. Os Mestres primavam pelo empenho de serem professores orientadores e os Pais primavam pelo desempenho de sua missão de serem progenitores de alunos. Assim as coisas caminhavam. A Educação era para valer. O professor era a imagem em que se espelhavam os alunos.
Foi por essa época que conheci Dona Maria. Apareceu-me na Escola no final do período, vestida toda de preto, enlutada pela morte do esposo, que havia ocorrido uns dias antes. Conduzida pelo filho Antonio,  que era meu aluno, veio falar comigo. Estava desesperada. O fazendeiro havia jogado sua mudança no terreiro, porque seu marido morrera e ela não tinha serventia para ele. Tinha seis filhos com menos de dez anos de idade, e estava prestes a ter o sétimo.
Sua mudança fora despejada e era um dia de chuva, e não tinha onde abrigar os filhos... Fiquei atarantada, sem rumo... Como ajudá-la?  Naquela época, eu também estava pelejando para criar meus filhos pequenos, e não tinha um cômodo para abrigar uma família inteira.
Atordoada, olhei para cima, pedindo ajuda a Deus, e quando baixei os olhos vi uma colega professora, cujo marido fazendeiro viera buscá-la e a seus filhos, porque moravam numa fazenda próxima. E sem hesitar, fui  até eles e pedi que me ajudassem a resolver o problema.
E ele, generoso, disse apenas: “Tenho uma tulha de café que está vazio aqui no bairro, se a senhora não se incomodar, pode ficar lá.”
E o próprio fazendeiro mandou seus empregados buscar a mudança e acomodar a família de dona Maria, que ficou morando por anos nesse lugar. Além do mais, o fazendeiro lhe forneceu leite de graça por anos.
Esse período de vida foi o mais sofrido para dona Maria. Por mais que trabalhasse no Bairro como lavadeira e ou cozinheira nas casas de família, a renda era mínima, porque mesmo as patroas eram pobres e, não podiam lhe pagar como merecia e precisava para alimentar as crianças.
Lembro-me que sempre que podia, fazia cestas de comida para ajudá-la. Um dia, me contou que havia cozinhado milho seco que havia na tulha, para alimentar os meninos. Outra vez, ela mandara as crianças dormirem mais cedo, porque não havia nada para comer...
         Um dia, conseguimos incluí-la num programa de assistência do Governo, cuja responsável local era a Cartorária Doutora Julieta Antonieta Simioni. E todos os meses, ela vinha receber esse auxílio, que era irrisório, mas que ajudou a comprar o arroz e o feijão.
Entretanto, o fazendeiro que a abrigou na tulha se tornou Prefeito, e atendendo a um pedido dos professores e pessoas do Bairro, contratou dona Maria como Merendeira. E dona Maria merendeira se tornou. E a estabilidade chegou, com os filhos já mocinhos enfrentando serviços nas roças da vizinhança.
Dona Maria Merendeira era caprichosa, e amava fazer merenda. Não faltava às suas obrigações, a não ser para acudir a uma filha excepcional que possuía.
Por anos e anos, dona Maria foi a Merendeira da Escola. Respeitada pelos alunos e estimada pelos professores, para quem sempre fazia o almoço.
No final dos anos 70, deixei o Bairro, por transferência de sede de serviço e por um bom tempo, perdi o contato com ela.
Mas, os filhos foram crescendo e se casando, e a filha que precisava de sua assistência ficava sozinha em casa. Temendo que algo de ruim pudesse acontecer a ela na sua ausência, dona Maria se aposentou sem ter completado o tempo necessário, com renda parcial.
No começo dos anos 90, eu me aposentei e retomei o contato passando a visitá-la. Estava envelhecida, triste e só com a menina Ivanilde. Tinha muitas saudades da escola onde fora merendeira por anos, e tinha um desejo imenso de revê-la.
 Um dia, há uns três, quatro anos, eu a coloquei no carro e rumamos para a escola, que ficava distante de sua casa. Era uma tarde de sábado e a escola estava fechada, mas demos uma volta, relembrando os tempos agitados, com centenas de crianças correndo pra lá, pra cá. Percebemos que as árvores do bosque estavam imensas, e aproveitando a tarde silenciosa, sentamos à sombra delas e ficamos ouvindo os pássaros cantando. Passamos uma hora agradável ali.
De outra vez, eu a convidei para dar um passeio e a levei à escola, num dia de semana. A escola estava aberta e pudemos rever as dependências. Revisitamos o refeitório e a cozinha, onde havia um fogão de lenha, no qual dona Maria fizera tantos doces. Mas, ela não ficou feliz nessa visita. Todas as dependências tinham sido reformadas, e nada lembrava a cozinha e o refeitório de antes. Dona Maria se sentiu um estranho no ninho. Para consolá-la, sentamos sob as árvores amigas e relembramos os Diretores e Professores que ali havíamos conhecido...
Entretanto, a menina, que os médicos prognosticaram uma existência de 15 anos no máximo, viveu até os quarenta e tantos anos. Sua deficiência era a seqüela de Meningite, que contraíra aos dois anos de idade, que afetou sua fala e seus movimentos, tornando-a dependente de ajuda. E assim, a vida da dona Maria ficou limitada a cuidar da filha, cujas dificuldades de fala, e de locomoção foram aumentando com o passar dos anos.  Mesmo nos últimos tempos, quando a fala era quase impossível, a Ivanilde me reconhecia como a “dona Timie”. E há dois anos, essa menina acabou falecendo, após muito tempo acamada. A menina era a paixão de Dona Maria.
Com a partida da moça, dona Maria se viu de repente, sem a companheira de anos e anos e perdeu o rumo na vida. Após o funeral, ela se deitou e nunca mais se levantou.
E agora, aos setenta e nove anos de idade, está também de partida. Entre uma internação e outra, está cada vez mais fraca, mais esquecida e mais confusa. Com ocasionais reidratações no Hospital, vai sobrevivendo, mas sabemos que o fim está próximo. Ainda me reconhece e sabe dizer meu  nome...
E estamos orando que Deus tenha misericórdia e a leve mansamente, sem sofrimento, para um lugar de sonhos, onde está a querida filha Ivanilde.
Dona Maria Benedita Moreira de Assis, minha valente amiga...

Mirandópolis, outubro de 2012.
Kimie oku in “cronicasdekimie.blogspot.com”

Dona Maria faleceu hoje aos oitenta anos de idade, em 26 de maio de 2013.

segunda-feira, 15 de outubro de 2012



Aos Mestres... com saudades

    Era o nosso primeiro dia de aulas no GEM, Ginásio Estadual de Mirandópolis e  chegávamos com um misto de curiosidade e medo, mas ao mesmo tempo orgulhosos, pois havíamos passado na frente de dezenas de meninos ao sermos aprovados no Exame de Admissão. Íamos freqüentar um novo mundo escolar, deixávamos a aritmética e conheceríamos a matemática, alunos  de uma professora polivalente passaríamos a ser alunos de professores específicos para cada matéria. Na hora da chamada teríamos nosso nome substituído por um número.  Coitado daquele que recebesse o número vinte e quatro.
          Os alunos veteranos nos observavam fazendo gozações e já nos colocando apelidos, tivemos sorte porque o diretor Pedro Perotti tinha proibido o trote a partir daquele ano. Só fomos intimados a não aparecermos mais de “cuecas” no ginásio, isto porque usávamos calças curtas. Os uniformes também mudaram, o tradicional terno cáqui e gravata foram abolidos e os novos seriam calças verde oliva e camisa  bege com gola trespassada. Os de educação física seriam calções azuis, camisetas brancas, kédis e meias  brancas.
          Durante estes anos de ginásio tivemos muitos professores, alguns por pouco tempo, outros por muito tempo. Todos permanecem em nossa lembrança, mas para o garotinho de dez ou onze anos de idade, que recebeu o impacto daquela mudança, os primeiros marcaram muito.
          A professora Zei nos apresentou às notas musicais, às fusas e semifusas; às colcheias e semicolcheias; ao pentagrama e à clave do sol. Aprendemos a ler a partitura e a solfejar: dorémifásol...rémifá   rémi  rédo ...
          Com o professor Ademar Sigristi realizamos vários trabalhos manuais: com a tesoura, cartolina e cola construímos vários poliedros,  com papel sulfite nos tornamos peritos na arte das dobraduras.
  O professor Onofre aumentou os nossos conhecimentos da História do Brasil e o professor Ivan nos levou a conhecer o mundo: conhecemos  os Maias, Astecas e Incas. Ao lado de Simon Bolívar participamos da libertação de países da América do Sul. Acompanhamos George Washington na proclamação da independência dos Estados Unidos,  ficamos com Abraham Lincoln e o General Grant  e os vimos vencer o General Lee, comandante dos Confederados, na guerra de Secessão. Passamos por todos os períodos da história da humanidade, mas foi o Renascimento, na Idade Moderna, que mais nos agradou., com seus artistas, cientistas e literatos.
   Na antiguidade conhecemos a coragem de Davi, a força de Sansão e a sabedoria de Salomão. Passamos medo na Idade Média com a Inquisição e sofremos  as dores de Joana D’Árc. Torcemos por Napoleão Bonaparte na batalha de Waterloo e assistimos à Guerra dos Cem Anos. Nos silenciamos perante o horror de Nagasaki e Hiroshima.
          Aos onze anos de idade tínhamos aulas de Latim ministradas pelo professor Sanvito. Tínhamos de saber as declinações: puella, puellae, puellarum, puellam... Suas citações em latim eram conhecidas, principalmente a que dizia quando íamos fazer uma prova: Alea jacta est... Ingênuamente, ele distribuía as provas para que cada aluno corrigisse a do colega. Passamos a fazer as provas a lápis.
         Julio Mazzei foi embora para o Santos, para o Kosmos e no seu lugar veio o professor Jenner  que trouxe na bagagem uma bola pequena, cheia de crina de cavalo e regras para um jogo de quadra. Era o futebol de salão. Amor à primeira vista. Paixão para uma vida toda.
          Tivemos poucas aulas com a dona Noêmia, uma pessoa, simpática, querida por todos, mas Deus a levou. O professor Zanin veio substituí-la, recém formado, dinâmico, chegou querendo transmitir o que sabia e conquistou todo mundo.  Fizemos experiências, conhecemos todos os ossos do corpo humano, do calcâneo ao occipital. Aprendemos que o maior órgão do corpo humano é a pele e que o coração é do tamanho da nossa mão fechada. Vimos que temos a mesma quantidade de costelas dos dois lados do corpo apesar de a Bíblia citar que Deus tirou uma para criar Eva. Eu acho que ELE tirou duas: com uma fez a mulher que não conhecemos e com a outra fez a mulher que pensamos conhecer. De qualquer modo foi o melhor presente que ELE nos deu,  melhor que a própria vida, pois sem a mulher a vida não teria significado.
          Ela era simpática, pequenina, graciosa e nos conquistou aos nos cumprimentar fazendo beicinho: bonjour, mes amis. Dona Ani desenvolveu em mim o interesse pela língua francesa. O Hino Nacional Brasileiro, o Hino da Independência e a  Marselhesa são, para mim, os três hinos mais bonitos que conheço: Allons enfants de la Patrie. Le jour de gloire est a arrivé!...
          Nós já a conhecíamos dos exames de admissão. Era grandona,  rigorosa, enérgica  e às vezes gozadora. Dona Dirce ensinou-nos que “menas” não existe, que não se diz “fazem” tantos anos e que índio é que fala “ mim fazer... mim pegar...” Nas sextas feira, as aulas eram de redação. Alunos eram sorteados para apresentarem uma redação na aula seguinte. Fui sorteado e meu tema era “o entardecer”. Pedi para o Zé Pedro fazer para mim. No dia da apresentação ele me entregou a redação. Neste dia o diretor, dr. Neif, foi assistir à apresentação.
Todo trêmulo fiz a leitura da minha redação. Fui aplaudido, todos gostaram e dr. Neif me elogiou, mas perguntou-me se já tinha lido José de Alencar. Intrigado com a pergunta respondi-lhe que não, nunca tinha lido José de Alencar. A conversa acabou ali.
          Anos depois, já no científico, lendo Iracema, qual não foi a minha surpresa ao verificar que o famoso escritor havia usado a “minha redação’ para descrever o anoitecer. Que vergonha!!!! Ah Zé Pedro!!!Ah Zé Pedro!....
          Dona Celina era bonita, bonita, gostosa e autoritária. Não dava um sorriso, parecia um sargentão ministrando aula. Suas aulas eram de disciplina militar. Tínhamos de sentar eretos, olhando na nuca do colega da frente. Se um objeto caísse não podíamos pegar. Acho que ela descobriu porque alguns alunos derrubavam a caneta e abaixavam para pegar. Se fôssemos falar tínhamos de erguer a mão e...: teacher, may  I have a question?    I don’speak  and I don’t know English, but I to learned lot from her.
          A professora Dalva Colaferro ficou pouco tempo conosco. Estava doente, tirou afastamento e não voltou mais, vindo a falecer. Dona Myriam assumiu as aulas e com ela navegamos pelos oceanos, conhecemos os cinco continentes. Atravessamos os canais do Panamá e de Suez, escalamos as Montanhas Rochosas, os Alpes e os Andes. Do alto do Kilimanjaro avistamos toda a África, admiramos o Grand Canyon e nos aquecemos nos gêiseres da América do Norte. Vimos a fertilidade do Nilo, descemos o Velho Chico numa gaiola e nos assustamos com a pororoca no Amazonas.
          O professor Oswaldinho e o Kazuo nos ensinaram a regra de três, que tanto galho nos quebrou, mostraram-nos que logaritmo não era nenhum bicho de sete cabeças, que hipotenusa não era palavrão e que catetos não são só porcos do mato.
          Queridos mestres, como o lavrador que ara e semeia a terra  vocês semearam o saber. Temos um pouco de vocês na nossa formação.
A vocês, os nossos agradecimentos e as nossas saudades.

Ademar Bispo
          
              
         
         

segunda-feira, 8 de outubro de 2012


E agora, José?


A festa acabou. E agora, José?
Foram três meses de campanha dura, andando daqui prá lá, de lá prá cá... Gastando as solas de sapatos, formando bolhas, tomando cafezinhos frios, sucos mornos, comendo lanches, que hora de almoço era precioso e não podia desperdiçar.
Quando estava em casa era só para conferir a agenda, prá ver se não havia esquecido de visitar aquele eleitor amigo, que faz questão de um abraço, de uma visita pessoal... E conferir se os santinhos darão pro gasto.
E o telefone tocando o dia todo. Uns eleitores mal acostumados folgando em cima de candidatos, e pedindo um botijão de gás, porque acabou e não tem grana prá comprar... e as crianças estão sem comer desde ontem. Ta bom, pega o gás lá no compadre e diz que depois eu passo lá. Não, acho que vou telefonar... depois você vai lá buscar, ta?
Então vem o cabo eleitoral pedindo prá adiantar umas notas, porque a mãe não está passando bem e é preciso comprar uns remédios caros, que a farmácia popular não fornece. Puxa! Mas, já lhe adiantei meio salário!
E enfrentar a via sacra: Vamos mudar de bairro, que lá onde fomos ontem o clima não estava nada amistoso. Mas, o bairro é de trabalhadores e a maioria das casas só tem crianças trancadas, que os pais estão todos pelejando pela vida. Mamãe falou que não é para pegar nada de estranho. Nem santinho deu prá entregar. Numa rua comprida só três moradores foram amáveis, mas disseram: Nóis não vota. A gente num sabe ler nem escrever. Tudo bem, vamos em frente que atrás vem gente. Noutra casa um eleitor zangado, despeja toda a fúria de uma vida desgraçada na visita inesperada: Vocês vêm cum essa cunversa mole, e dispois qui ganha, uma banana prá nois. Nunca mais põe os pés por aqui. Vou votar é nada. Qui qui eu ganho cum isso? Num vem qui num tem.
Saldo do dia: Zero! Andamos tanto prá nada! Que calor! Puxa! Será que essa chuva vem ou não vem?Amanhã será melhor, se Deus quiser!
E amanhã, amanhece com dor de barriga e fica acamado, indo ao banheiro de hora em hora. Será que foi aquele suco, que bebi junto com o cumpadre lá no boteco? Tava morno e parecia vencido... Mas eu tenho que sarar, porque os adversários estão de carro de som na rua, bandeirolas e um bando de cabos eleitorais... Passo na farmácia e tomo uns remédios e vamos prá luta! Na primeira hora foi tudo bem. De repente, porém a dor de barriga voltou com força total e não havia banheiro à vista. Foi preciso apelar prá aquele boteco da esquina, com um banheiro mal cheiroso prá bebum vomitar. Mas era emergência e não houve escolha... e não havia papel higiênico. O jeito foi usar santinho mesmo. Mas que papel duro e seco! Amanhã tenho que me lembrar de carregar papel higiênico... Puxa! Como candidato sofre! Será que os outros já passaram por isso? Acho que só eu mesmo! Mas, a dor passa e a tarde termina com o encontro de alguns eleitores fiéis, que prometem votar: Pode deixar, amigo, que só na família tem 13 votos garantidos! E o candidato vai pras nuvens de felicidade.
Quando chega ao Comitê, descobre que acabaram os santinhos, e fica sabendo que o Partido já lhe subvencionou tudo que tinha direito, e daqui prá frente terá que arcar sozinho. E tou devendo os folders na Tipografia... E estamos no meio da campanha! Nunca pensei que a brincadeira ia sair tão caro!
E aí o telefone toca! É o filho reclamando sua presença na reunião de Pais e Mestres prá amanhã à tarde. Enquanto está falando com o filhote, chega um amigo, e ele não pode perder a oportunidade de passar um santinho. Ta bom, filho! Ta bom, amanhã, né? Pode deixar, eu vou. E aí, atendendo ao amigo nem se lembra mais do que falou com o filho. Este percebe que o pai está cada vez mais distante e a revolta lhe cresce no peito de adolescente... Porcaria de eleição... Daí a meia hora, a mulher lhe grita: Preste mais atenção aos seus filhos! Como vai servir à comunidade, se não dá nem atenção aos próprios filhos? Ta bom, ta bom, depois a gente se fala. E desliga..
Mas, vamos lá, a campanha tem que continuar. Na esquina vê o maior adversário rodeado de correligionários e puxa-sacos. E vão todos pro barzinho beber uma cerveja. Até que gostaria de uma geladinha. Mas, a luta continua. Aproveita prá falar mal daquele candidato prá um passante, que sorri amarelo, provando que é dele.
Quando volta prá casa, está moído de cansado. Puxa, hoje estou podre! Toma um banho às pressas, engole qualquer coisa e... A mulher: Aonde vai? Ah! Esqueci de dizer, tem uma palestra no Centro Comunitário, e não posso perder a oportunidade de ganhar uns votos... De novo? E a voz da mulher está estridente, e ele não entende o porquê...
Outro dia! Chuva! Chuva abençoada, mas como fazer a via sacra com toda essa água descendo? E escorregando e molhando as barras das calças, lá vai ele abordar alguém, que lhe dá uma resposta malcriada e o descarta de vez. Aproveita para ir ver uns amigos de verdade, lá na oficina onde trabalham, e eles prometem conseguir mais votos. E um deles o chama de lado e lhe pede um emprego pro filho que fica o dia todo zanzando pra lá prá cá... Tá bom, vou ver, mas primeiro preciso me eleger. Ah! Não! Tu tá eleito. E com essas doces palavras ecoando até o coração vai seguindo sua via crucis... 
E aí o Presidente do Partido o convoca para o Comitê. Você só ta preocupado com você. Esqueceu a campanha do chefe, do Prefeito. Dizem que só tá pedindo votos procê. Tá errado, companheiro. Tu foi convidado prá acrescentar. É prá isso que o Partido aceitou a sua participação. Tá certo, Chefe, eu estou meio atrapalhado, mas vou acertar, podes crer. Oia lá, hein! Fidelidade partidária, viu?
E ele: Mais essa, quando falo o nome do candidato a prefeito, todo mundo faz cara feia. É brincadeira? Mas, vamos lá, não falo nada, mas entrego os santinhos dele, e aí ninguém pode me cobrar nada.
E aí, José fica tão atarantado com a bronca do chefe, que esquece da Reunião de Pais e Mestres do filho. Come uma porcariazinha num boteco e emenda o dia com a noite. Distribui uns santinhos, recebe uns abraços de alguns ex-colegas de escola e volta às 21 horas para casa.  Antes nem tivesse voltado. O pau comeu a noite inteira e depois, a mulher chorava num canto e o filho no outro. Nem dormiu direito, sentindo-se culpado, mas achando que ninguém o compreendia e nem lhe dava apoio. Tou lutando por todos...
Mas, estamos na reta final. Depois eu conserto tudo. Procurou ser gentil com o filho, levando-o à escola. Procurou a professora e soube que o garoto não está indo bem nos estudos. Anda muito distraído, e por qualquer coisa, perde as estribeiras. Pai, vocês estão com algum problema em casa? Que é isso, professora? Está tudo bem. Problemas de adolescente, fessora! É, pode ser. Mais essa! Não posso falar nada prá a mulher, que está uma fera, e pro menino, o que vou dizer?
Vem almoçar em casa e diz: Gente, tenham um pouquinho de paciência, que quando o pai for vereador, tudo vai mudar! Vou ganhar mais e poderei comprar aquele celular moderninho que você tá querendo. Oba! Vou torcer procê, pai!
Nesse dia tudo corre bem, conseguiu distribuir muitos santinhos, recebe apoio de alguns conhecidos e volta feliz prá casa.
E enfim chega o dia. Quanta gente! Zé, você também tá nessa? É, e conto com o seu apoio. Mas já me comprometi com o meu vizinho, que me socorre sempre que preciso. Não posso trai-lo. Tá bem. Boa sorte, compadre! Como será que tá na outra escola? Será que meus amigos vieram votar? E aí, roda feito barata tonta de uma escola pra outra. Sempre aquela festa, com bandeirolas e santinhos na faixa permissível...
 Está tão ansioso que passa o dia só com água. Nada lhe desce pela garganta. Será que a mulher vai votar em mim? E os meus parentes? Bom, tem aquele que nunca foi com a minha cara, mas os outros cinco com certeza. E os vizinhos? Prometeram que metade da família votaria em mim. Então, somando, cinco mais três, mais vinte colegas de trabalho, mais uns duzentos amigos do bairro... Ah! E os votos prometidos pelos favores que fiz, mais uns cento e cinqüenta, mais os amigos de meus pais e seus filhos. Ah! Com certeza, tou lá. Quem sabe, pego o primeiro lugar. Aí, serei o Presidente da Câmara! Aí sim, troco de carro e mudo de bairro, que aquele onde moramos é muito chinfrim... muito pobre. Mereço coisa melhor. E o Zé, de sonho em sonho foi tomado pela canseira e fome e acabou desmaiando, bem na hora que começaram a anunciar os resultados.
Horas depois acordou no sofá, com a barulheira da família: Eu não acredito! Tanto sofrimento pra nada! Tanto desperdício, socorrendo outros com fraldas geriátricas, com remédios caros, com botijões de gás, fora as contas de petiscos e cervejas nos botecos!  As corridas de carro de graça pra gente que nunca vi mais gorda!  E só 18 votos? Zé, acorda seu tonto. Vê se aprende de vez! Tu foi um idiota! Foi usado e não conseguiu nada. Vereador, não me faça rir. Dá até prá saber quem votou em você! Viu só, prá que serve uma campanha eleitoral? E pelo amor de Deus, venha dar um fim nesses folhetos e santinhos que eu não agüento mais  ver isso.
Pai, e o meu celular?
E agora, José?
A festa acabou.

Mirandópolis, 8 de outubro de 2012.
kimie oku in “cronicasdekimie.blogspot.com”


P.S.   Dedico esta crônica a todos os cidadãos simples, que são manipulados para arrebanhar votos para os partidos políticos. Que acreditam no que fazem acreditar, mesmo não tendo a mínima chance de chegar lá. Escrevi isto com muita dor na alma, ao constatar o desempenho dos menos votados. É doloroso demais.